Sandra tem 35 anos, trabalha como administrativa numa empresa de serviços, recebendo um salário bruto de 750 Euros, o que representa um ordenado líquido de 635. Casada com Hugo, de 37 anos, que trabalha numa empresa no sector da contabilidade tendo como rendimento, mais ou menos o mesmo de Sandra. Nem sempre foi assim, há dois anos a empresa de prestação de serviços de contabilidade em que Hugo trabalhava fechou, colocando-o no desemprego, teve sorte de rapidamente arranjar uma alternativa, mas o seu rendimento baixou significativamente, e desde então tem tentado arranjar outra colocação, mas sem sucesso, até que se resignou, a esperar por melhores dias. Em 2008, nasceu a pequena Joana, única filha do casal, tendo portanto agora quatro anos de idade.
A história passa-se em Janeiro de 2013, com Sandra sentada na cozinha do apartamento que o casal comprou em 2005, num subúrbio da capital de um qualquer país resgatado pela Troika, que faça fronteira com Espanha. Sabe que os próximos ordenados vão ser menores, espera pela transferência para saber ao certo quanto, mas espera qualquer coisa entre os 120 e os 150 euros, ou seja, vai passar a viver com cerca de 1350 Euros.
Discorre sobre o assunto e sente-se assustada. O empréstimo da casa, pese embora tenha baixado muito nas prestações, na verdade leva metade desse rendimento, e com os cortes que o casal tem sofrido, Sandra e Hugo têm abdicado de tudo para manter o essencial, e para que nada falte à filha. “150 Euros fazem muita falta, onde vou eu cortar 150 Euros” eleva a voz angustiada. Na alimentação é impossível, estão nos mínimos, nos transportes, não consegue, porque ambos necessitam de se deslocar para chegar aos empregos, o segundo carro do casal desapareceu em 2010, para fazer frente à situação de Hugo. O outro é necessário, absolutamente necessário, para as deslocações de Sandra e de Joana.
Apenas lhe sobra o colégio de Joana, a última coisa que Sandra queria cortar, mas perante a evidência dos números, a única alternativa viável, são 250 Euros mensais, e tem a consciência que não os pode suportar. Aliás, já há em Setembro hesitou na inscrição, e já teve atrasos na prestação, que aliviou quando recebeu o subsídio de natal. Chama Hugo que se encontrava na sala a assistir à televisão, sem TV Cabo há largos meses, e comunicou-lhe que iria retirar Joana do colégio, a partir de Fevereiro. Hugo, como em outras situações acedeu, sentia uma certa vergonha, mas não estava em condições contrapor.
Na manhã seguinte Sandra sai mais cedo de casa, com tempo suficiente para avisar Helena, a directora e proprietária do Colégio frequentado por Joana, da decisão do casal. Helena, confrontada com a decisão, não disfarçou o incómodo, só nesta semana era a terceira notícia destas que recebia, e o colégio que montou há uma década nunca tinha passado por uma situação semelhante, já aguentava seis meses em prejuízo, tendo perdido metade das crianças inscritas. A sua angústia prendia-se com a decisão que teria de tomar, tinha de despedir mais pessoas, pelo menos uma, para evitar fechar, e tentar obter algum sustento para si, que mercê das circunstâncias, também já tinha reduzido todas as despesas, pessoais e do colégio ao mínimo, vivia das poupanças dos tempos melhores.
Avançou para a decisão, chamou Susana, e comunicou-lhe que teria de prescindir dos seus serviços, e consequentemente dos 500 Euros mensais que auferia. No entanto, esta estaria protegida pelo subsídio de desemprego que duraria pelo menos quinze meses, e que apesar de tudo não representa um rendimento tão diferente do que tem hoje em dia. Susana, que já esperava a notícia há algum tempo conformou-se, afinal iria receber a indemnização e depois o subsídio, nos primeiros tempos até estaria melhor, depois se veria.
Helena sabia que ainda não era suficiente, e terminado o dia de trabalho, pediu para falar com a sua emprega doméstica, que todas as semanas se deslocava à residência, e propor-lhe a redução para 2 dias por mês, esta situação, já a andava a evitar há algum tempo, uma vez que Rosa, a sua empregada, se encontrava inscrita na Segurança Social, e a lei exige um mínimo de 30 horas mensais, a redução implicava a renúncia de contrato, e o cair de Rosa fora do sistema de protecção, mas não tinha alternativa. Confrontada, com a nova realidade, e sabendo os problemas porque Helena passava, Rosa acedeu, perdia 2 dias e a Segurança Social, “mas que raio, vão-se os anéis ficam os dedos”.
Voltando a Sandra, tinha agora um outro problema para resolver, onde colocar Joana nas horas de trabalho, nos dias seguintes deixou-a com a mãe, Maria Augusta de 67 anos, viúva que toda a vida tinha sido doméstica e que sobrevivia com uma pequena pensão de 400 Euros, que ficou da morte do marido há 3 anos.
Sandra, não estava contente com a situação, sabia que a mãe era uma mulher doente, com várias complicações cardio-vasculares, e que não vivia de forma desafogada, antes pelo contrário. Os 400 Euros eram esticados de uma forma quase olímpica para durarem os 30 dias. A farmácia era um problema, os medicamentos do coração, custavam 60 Euros, a renda da casa, embora antiga, estava agora nos 75, mercê da nova lei das rendas, a electricidade tinha aumentado, e já não podia reduzir o consumo, a sua alimentação e as restantes despesas davam conta do rendimento até ao último cêntimo, e parecendo que não, tanto por questões económicas como de saúde uma criança 8 horas ao dia, não era aconselhável.
Sandra pediu à mãe, e no primeiro dia de Fevereiro, lá ficou a pequena Joana. Não sabia por quanto tempo, uma vez que Sandra vasculhou nos estabelecimentos do pré-escolar e vagas nem uma, talvez em Setembro diziam-lhe. Combinaram que a avó trataria da alimentação da criança, ajuda concedida por Maria Augusta sem saber muito bem como a suportar, uma vez que faltavam dez dias para receber a pensão, e o dinheiro estava mesmo a acabar, e ainda faltava a farmácia, que dentro de dois dias os medicamentos do coração acabavam, “mas que raio era sua neta”, tinha de ajudar, e coitada da filha tão angustiada que andava.
Maria Augusta lembrou que 6 meses antes tinha estado duas semanas sem tomar um dos medicamentos do coração, que estava esgotado e que não sentiu grandes diferenças, agora seriam 8 dias, e podia suportar a alimentação da neta e assim ajudar a filha. No dia seguinte, dirigiu-se à farmácia habitual, e pediu para não lhe aviarem o medicamento mais caro, ficando a receita para dia 11 ou 12, altura em que receberia nova pensão.
Joana estava numa idade complicada e exigia muito da avó, que chegava às 18h30 de cada tarde exausta, e era com alívio que via chegar Sandra, para recolher a filha, o cansaço ia-se acumulando, mas não se queixou, uma vez que estava convencida que dentro de poucos dias estaria habituada. Na tarde do dia 6, sentiu tonturas quando estava a arrumar os pertences da neta, antes da filha a vir buscar.
Quando por volta das 18h40 Sandra entra em casa da mãe encontra-a prostrada no sofá, com a neta a brincar aos seus pés. Chama uma ambulância, e encaminha a mãe para o hospital mais próximo, onde lhe é diagnosticado um Acidente Vascular Cerebral (AVC), felizmente ainda a tempo de ser socorrida, mas exigindo internamento nos próximos 15 dias, e uma bateria de exames e tratamentos. No dia da alta, mercê do novo sistema de informação ao utente do Serviço Nacional de Saude, Sandra é informada que o tratamento da mão, embora quase gratuito, tinha custado 10 787 Euros, aos quais irá acrescer os tratamentos futuros, alguns para a vida toda.
Poderia continuar a acrescentar personagens e situações a esta história. Não é necessário, o ponto é o seguinte o Estado vai retirar a Sandra e Hugo no mês de Janeiro 150 Euros, receita fiscal efectiva liquidada, com isto perdeu directamente 15 euros do IVA do colégio de Joana, portanto ficamos com 135, perdeu 55 Euros da Segurança Social de Susana, e 20,55 Euros das contribuições de Rosa, portanto 75,55 Euros, ficamos com 59,45 Euros de receita efectiva, com os quais terá de enfrentar o subsídio de desemprego de Susana que serão 400 Euros, e os tratamentos de Maria Augusta.
Não tenho dúvidas, isto vai resultar.
António Vicente
P.S. Aconselho ao ministro Gaspar o filme The Butterfly Effect , ajuda à compreensão do acima exposto